A ética da malandragem

Os acidentes em espaços turísticos, no Brasil, cada vez mais freqüentes e previsíveis, estão a revelar por inteiro um dos fenômenos mais interessantes e reveladores do caráter nacional: a ética da malandragem. O país, em matéria de casos fatais com turistas, está sendo vítima do relaxamento, da negligência e desleixo, seja por parte de empresários do turismo seja por parte de autoridades públicas.Tanto os primeiros quanto os segundos têm responsabilidade sobre as condições de segurança dos empreendimentos turísticos. À ambição de ganhar dinheiro com materiais inseguros e equipamentos obsoletos ou de segunda mão soma-se a ausência de controles das estruturas de lazer. Se a cultura da improvisação tem sido uma constante até em programas considerados símbolos de Governo, como o Fome Zero, em setores em franco processo de consolidação, como o turismo, a irresponsabilidade chega a ser gritante. Não é a toa que cada feriado prolongado no Brasil está se caracterizando como calendário de tragédias.

O naufrágio do Bateau Mouche, em 1988, no Rio de Janeiro, que matou 55 pessoas, e o recente acidente do barco Tona Gálea, em Cabo Frio, que matou 15, são casos evidentes de imprevidência e incúria. O primeiro, com 150 pessoas, superlotado, afundou, não suportando o excesso de peso. O segundo, com adaptações inadequadas, não resistiu à força das ondas e dos ventos. Ambos não portavam coletes salva-vidas para todos. Os donos do Bateau vivem na Espanha e na Suíça. Os donos do Galea estão culpando a natureza. Cotidianamente, ocorrem acidentes em todos os espaços turísticos do país, ocasionando mortes e vitimando centenas de pessoas. A maior parte dos casos acaba no esquecimento e raramente os culpados são condenados. Essa é a trágica realidade de uma das facetas do turismo nacional.

Essas são algumas das constatações a que tem chegado a Associação Férias Vivas, entidade não governamental, que há um ano se dedica à causa de prevenção de acidentes turísticos em nosso país. Quem se propõe a passar alguns dias em algum espaço turístico, principalmente naqueles que oferecem condições e estrutura para a prática de esportes de aventura, precisa tomar muito cuidado. Regra geral, há poucos profissionais disponíveis para a orientação, os equipamentos são escassos, sendo alguns deles obsoletos ou precários, e os esquemas de emergência, para casos de acidentes, são extremamente deficientes. Até mesmo, a prática de esportes considerados seguros, como a cavalgada, merece maiores atenções. Foi num simples passeio a cavalo que perdi uma filha, em um acidente estúpido, causado pela inadequação de uma sela, improvisada para uma menina de 9 anos, e da falta de um capacete. Pior, ainda, foi constatar que o estabelecimento não dispunha de sistema de atendimento emergencial.

Para poder conscientizar o poder público, em nosso país, e cobrar dos empresários do turismo maiores responsabilidades e controles sobre seus negócios, criamos a Associação Férias Vivas, cuja meta é a de defender os usuários do turismo contra a falta de zelo que grassa nos espaços nacionais de lazer. Se o Brasil pretende ser uma referência no turismo internacional, em função de seus potenciais e do esgotamento das possibilidades turísticas em áreas como a do Caribe, não poderá ser refém da irresponsabilidade de empresários que adotam o lucro, a qualquer preço, como lema. Ao Poder Público, cabe papel fiscalizador de magnitude. Que adianta a Embratur se esforçar para “vender” o turismo brasileiro aos aposentados norte-americanos, europeus e japoneses, se os espaços que lhes serão oferecidos ainda não dispõem de condições de segurança para proporcionar lazer tranqüilo e seguro?

O Ministério Público, que tanto avança em áreas contaminadas como a da corrupção nas administrações públicas, não pode deixar de colocar a sua lupa sobre as estruturas privadas, que se colocam à disposição da comunidade. Investir em turismo não significa apenas alocar recursos em construção de hotéis, em expandir as redes de transporte ou em intensificar o sistema de marketing e vendas. O investimento mais seguro é aquele que proporciona retorno. E esse é o investimento que se faz na melhoria das condições de segurança dos empreendimentos de turismo e lazer. Ganhar dinheiro, de modo displicente para com o usuário de serviços, é desonestidade. E de malandragem em malandragem, de acidentes continuados e mortes anunciadas, o Brasil vai escrevendo sua má fama. A propósito, teremos mais um feriado prolongado nesta semana. Fazemos votos para que, mais uma vez, não sejamos vencidos pela ética da malandragem.

Por Silvia Maria Basile
Arquiteta, é diretora presidente da Associação Férias Vivas.