A responsabilidade do estado por danos causados por acidentes de recreação, lazer e turismo

Acidentes acontecem e, infelizmente, muitas vezes causam danos pessoais, materiais e até mesmo morais. Podem acontecer durante a prestação de serviços pelo Estado, em locais que estão, também, sob a administração do Estado. Nesses casos, pode o Estado ser responsabilizado por eventuais danos causados? Em que medida?

Mais especificamente, pergunta-se: o Estado tem obrigação de indenizar aqueles que sofreram danos em razão de acidentes ocorridos em equipamentos de recreação, lazer e turismo públicos? Em outras palavras, quando é que o Estado é responsável pelos acidentes ocorridos em locais públicos, onde se desenvolvem atividades de recreação, lazer e turismo?

O Estado – entendido este como qualquer Município, Estado da federação, a União, cada um com seus diversos órgãos, além das empresas públicas, as autarquias, e as empresas privadas prestadoras de serviço público – desenvolve diversas atividades e, em razão delas, pode vir a causar danos aos particulares, por meio de seus agentes.

No Brasil, sempre se entendeu e se previu que o Estado pode ser responsabilizado quando causar danos aos particulares. É o que prevê nossa Constituição, cujo artigo 37, § 6º diz que “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros”.

De acordo com essa norma, não há qualquer exigência de demonstração de culpa por parte do Estado, para que possa ele ser responsabilizado por dano causado a um particular, sendo necessário, apenas que se demonstre a existência do nexo de causalidade entre o evento e o dano.

É a chamada responsabilidade objetiva do Estado, que prescinde da verificação da culpa. Se o Estado, ao agir, causa um prejuízo, fica obrigado a reparar o dano, independentemente de se investigar se houve ou não culpa – seja dolo, seja negligência, imperícia ou imprudência.

Esta é a regra em matéria de responsabilidade que se aplica toda vez que se verificar a ocorrência de danos causados pelo Estado em todas as áreas de sua atuação, inclusive naquela relacionada às atividades de recreação, lazer e turismo.

Considerando, aliás, que o lazer está expressamente previsto em nossa Constituição como um direito social (artigo 6º), o Estado deve, cada vez mais, investir nessa área de atuação, criando e administrando parques, centros de lazer e esportes e outros equipamentos públicos, por exemplo. E atuando mais, acaba correndo mais riscos de causar danos e prejuízos, sendo, assim, de grande atualidade e importância o debate sobre a responsabilidade do Estado nesses casos.

Como já dito, a responsabilidade do Estado é, em princípio, objetiva, inclusive aquela por danos causados em acidentes de recreação, lazer e turismo, bastando a comprovação da ocorrência do fato, do dano e do nexo de causalidade entre um e outro.

Mas esta regra geral comporta exceções.

Assim é que se exclui a responsabilidade do Estado quando o acidente ocorrer por força maior (que é o acontecimento da natureza imprevisível e inevitável, e estranho à vontade humana, como tempestades e terremotos) ou por caso fortuito (que corresponde a um ato humano, mas que está além do controle da administração pública, como uma greve).

Também é afastada a responsabilidade do Estado na hipótese em que a culpa pelo acidente for exclusivamente da vítima. A responsabilidade do Estado pode ser também atenuada, se houver culpa concorrente da vítima.

Há, ainda, mais uma hipótese, em que a regra da responsabilidade objetiva do Estado sofre temperamentos: aquela em que o dano é causado não por uma ação do Estado, mas sim por omissão, ou seja, por não ter o Estado agido.

A Constituição não faz qualquer distinção entre as hipóteses de ação ou de omissão do Estado e existe uma corrente doutrinária que sustenta que essa distinção é totalmente irrelevante e que, em qualquer uma delas, a responsabilidade do Estado seria objetiva, isto é, independe de culpa.

Porém, este o entendimento não é pacífico em nossos Tribunais e o próprio Supremo Tribunal Federal não tem uma posição uniforme. Em seus últimos julgados, porém, o STF tem acolhido a posição doutrinária que exige a comprovação da culpa do Estado, nos casos em que o dano é conseqüência de uma omissão.

Em 28 de maio de 1996, a Primeira Turma do STF acolheu, em julgamento de Recurso Extraordinário relatado pelo Ministro Celso de Mello, a tese da incidência da responsabilidade objetiva em face de omissão do Estado.

Pouco mais de um ano depois, porém, a Segunda Turma do mesmo Supremo Tribunal Federal chegou a conclusão diversa, entendendo haver a necessidade, no caso de omissão do Estado, de demonstração de ocorrência de falha do serviço. Também nesse sentido, a decisão no recurso RE 172.025-RJ e aquela que está prevalecendo no julgamento do RE 409.203/RS, ainda em curso no Supremo Tribunal Federal.

Trata-se do acolhimento da chamada teoria francesa da “faute du service” – falha do serviço ou culpa do serviço – nas hipóteses de omissão do Estado. A culpa do Estado, nessas hipóteses, e de acordo com essa teoria, caracteriza-se em três situações: o serviço não funcionou, o serviço funcionou mal ou o serviço funcionou atrasado. É preciso, assim, que se comprove a ocorrência de qualquer dessas situações, bem como do nexo de causalidade, para que se configure a responsabilidade do Estado. Não há, porém, necessidade de se perquirir quem foi o agente público que, ao deixar de agir, ocasionou o dano. Este entendimento em relação às omissões do Estado é de extrema relevância em se tratando de responsabilidade em razão de acidentes de lazer, turismo e recreação, já que, na maior parte das vezes, o que se imputa ao Estado, nesses casos, é exatamente uma falha na fiscalização, um serviço prestado de maneira insatisfatória (omissão estatal) e não, propriamente, a prática de um ato, por parte de um determinado agente (ação estatal).

No notório caso do Bateau Mouche, por exemplo, imputou-se à União Federal omissão na atividade fiscalizatória das embarcações, omissão essa que teria sido uma das causas do acidente que vitimou inúmeros turistas.

Também de omissão se trata nos diversos casos de afogamento em piscinas e parques aquáticos públicos, que têm sido submetidos ao Poder Judiciário. De acordo com a teoria que vem sendo acolhida pelo STF, em matéria de responsabilidade do Estado, é preciso comprovar-se, nesses casos, que o serviço oferecido ou prestado pelo Estado não funcionou, funcionou mal ou funcionou a destempo, e que haja um nexo de causalidade entre essa falha e o evento danoso, para que se caracterize a responsabilidade do Estado.

Só não responderá o Estado, nesses casos, se se caracterizar – além das já mencionadas causas excludentes (força maior, caso fortuito ou culpa concorrente ou exclusiva da vítima) – a inexistência de nexo de causalidade entre a falha do serviço e o acidente.

Assim é que se ocorre um afogamento em piscina pública que recebe um número de pessoas maior do que sua capacidade ou em que não há guarda-vidas, parece certa a possibilidade de responsabilização do Estado, eis que o “serviço funcionou mal”.

Por outro lado, se a piscina pública está devidamente cuidada, dispõe de um número suficiente de guarda-vidas, não se caracterizando qualquer falha no serviço, não pode, em princípio, ser responsabilizado o Estado por uma lesão sofrida por alguém que, nadando, bate contra a parede ou a escada, por exemplo.

Em suma, o Estado pode ser responsabilizado pelos danos que seus agentes vierem a causar, no exercício de suas funções, em qualquer área de sua atuação, inclusive lazer, recreação e turismo.

Se o dano for causado por ação de um agente, a responsabilidade é objetiva, isto é, independe da prova da culpa. Mas se o dano for causado por uma omissão que se atribui ao Estado, então poderá haver a necessidade de se demonstrar que houve uma falha no serviço (o serviço funcionou mal, não funcionou ou funcionou atrasado), para que se caracterize a responsabilidade do Estado.

Em qualquer hipótese, indispensável a demonstração do nexo de causalidade entre o fato e o dano.

por Mônica Nicida Garcia
Procuradora Regional da República, Mestre em Direito do Estado pela FADUSP.