As conquistas do código do consumidor

“Onde há fortes e fracos a liberdade escraviza: a lei é que liberta!”
Lacordaire

O vertiginoso crescimento da sociedade de consumo, especialmente no século XX, gerou insustentável desequilíbrio de forças entre fornecedores e consumidores. A liberdade dos empresários era quase total e, como afirmou, Lacordaire, “Onde há fortes e fracos a liberdade escraviza: a lei é que liberta!”. O Código de Defesa do Consumidor – Lei 8.078, de 11/09/90 -, um complexo sistemático de normas reguladoras das relações de consumo, instrumentalizou o consumidor com mecanismos adequados para sua defesa, no objetivo de reequilibrar a posição dos atores desse cenário e trazer conscientização de cidadania.

Antes do CDC, não havia legislação específica que protegesse a parte vulnerável dessa relação. A liberdade dos empresários era quase total. A Resolução da ONU, de n° 39/248, de 10/04/85, referindo-se aos direitos fundamentais dos consumidores, foi precursora e incentivadora do advento de nosso código.

Os benefícios trazidos pela nova legislação se traduzem em diversos aspectos, perpassando um campo multidisciplinar que abrange outros ramos do Direito, como o Civil, Penal, Administrativo e também Comercial. O Código regula a relação consumerista, mas sem excluir a aplicação das normas de outra natureza, supletivamente.

Muitos dos institutos e conceitos do CDC já eram tratados por essas ciências e aplicados nas relações de consumo. Entretanto, ao colocá-los num microssistema, o código deu-lhes especificidade, ficando mais claros os direitos dos consumidores e, bem assim, a aplicação da Justiça.

Dentre os benefícios trazidos pelo código, de ampla aceitação pela sociedade, um verdadeiro “best-seller”, destacamos alguns.

Primeiramente, a noção corrente de consumo estava focada em bens materiais, ou seja, no comércio de produtos como uma geladeira, um automóvel, um computador. Para o consumidor, a prestação de serviços parecia não fazer parte desse universo. O Código – ainda que tecnicamente não seja adequado inserir definições na norma legal -, optou por fazer constar em seu texto, algumas definições e, entre elas, as de consumidor (art. 2°), fornecedor (art.3°, caput), produto e serviço (art. 3°,§§ 1° e 2°). Exemplifiquemos com o setor do turismo, que se traduz essencialmente em prestação de serviços. Agora, o turista sabe que a esse mercado se aplicam as normas do CDC. Casos como o overbooking”, atrasos e cancelamentos de vôo, extravio de bagagem, hotéis de categoria inferior ao contratado, guias turísticos ineficientes, city tours frustrados e frustrantes, descortesias no atendimento, equipamentos precários, tudo isso pode ser objeto de reivindicações com fundamento no código.

O segundo fator importantíssimo introduzido no CDC é o estabelecimento da proteção à Vida, à Saúde e Segurança como direito básico do consumidor (art. 6°, I), contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços. Aliás, esse preceito é corolário do que já consta na Constituição Federal de 1988, art. 5°, caput. Atualmente, no setor turístico, esses direitos têm sido objeto de muita reflexão com o crescimento das atividades de aventura, também denominadas radicais, onde o risco faz parte da essência da atividade, é procurado e desejado pelo próprio consumidor, ávido por experimentar emoções fortes e testar seus limites. É primordial que haja prevenção a acidentes, com controle e neutralização dos riscos através da capacitação dos profissionais, adequação e manutenção dos equipamentos e eficiência nos procedimentos, seja numa simples caminhada, seja em atividades como arvorismo, canoagem, montanhismo, mergulho, passeios a cavalo, em bugues ou banana-boat. Em qualquer caso, a informação completa e elucidativa deve capacitar o praticante a discernir sobre o que, realmente, está disposto a enfrentar e sobre o que tem condições de enfrentar. O prestador do serviço deve, como já se disse, identificar os riscos, neutralizá-los e minimizar suas conseqüências. E, em nenhum caso, pode agregar periculosidade à prática de aventura, que já é, por essência, arriscada.

A noção de acidente de consumo também foi lapidada pelo CDC e estabelece uma distinção que não estava suficientemente clara na consciência do consumidor. Hoje, já se conhece a diferença entre defeito do produto e do serviço (arts. 18 e 20) e “fato do produto e do serviço” (arts. 12 e 14). Enquanto o produto defeituoso e a prestação de serviço defeituosa ensejam substituição do produto ou reexecução do serviço, devolução ou abatimento do preço, o “fato do produto ou do serviço” refere-se às conseqüências que resultaram daquele produto ou serviço defeituosos. Vale dizer, conseqüências lesivas com repercussão na esfera pessoal do consumidor, com abalo e ofensa de sua vida, saúde, integridade física, mental, emocional e moral, ensejando reembolso de despesas, lucros cessantes e pagamento de indenização por danos materiais e danos morais, inclusive estéticos, além de pensionamento, em casos específicos.

A dona de casa ferida no manuseio do liquidificar, por falha de seu funcionamento ou a vítima de overbooking, que deixou de embarcar ou embarcou com atraso, experimentando aborrecimentos, expectativas, angústias, desconforto, não têm apenas direito à substituição do produto ou reexecução do serviço, devolução ou abatimento do preço, mas também têm direito a indenização pelas lesões sofridas em virtude do defeito (fato do produto ou serviço).

Pois bem. O CDC atribui ao fornecedor a obrigação de indenizar os danos materiais e morais advindos do produto ou do serviço defeituoso. Anteriormente ao código, havia certa resistência do Poder Judiciário em acolher pleitos de indenização por danos morais. Hoje, entretanto, a matéria é pacífica e milhares de ações são julgadas procedentes, condenando-se ao pagamento de indenizações para compensar as agruras passadas pelo consumidor lesado. E não poderia ser de outra forma, eis que a Constituição já garante o direito à indenização por danos morais (art. 5°, V) e o CDC é, também, explícito: art, 6°, VI.

No campo da atribuição da responsabilidade, uma dupla conquista: a responsabilidade objetiva e a responsabilidade solidária.

O CDC, em mais de um artigo estabelece que os fornecedores respondem, “independentemente da existência de culpa”, pela reparação dos danos causados aos consumidores (arts. 12, “caput” e art. 14, “caput”). Portanto, o consumidor não necessita provar o elemento subjetivo. Não precisa provar que o fornecedor incorreu em uma das modalidades de culpa, como negligência, imprudência ou imperícia. Basta que se comprove o defeito do produto ou do serviço, o dano e o nexo causal entre um e outro. Não se perquire sobre a culpa e o fornecedor não pode alegar sua ausência para exonerar-se da obrigação de indenizar.

No que se refere à responsabilidade solidária, considera-se haver um liame comercial entre os elos da cadeia de produção de bens ou de prestadores de serviços, seus prepostos, terceirizados e representantes, de forma que todos são integralmente responsáveis pelos danos eventualmente causados. Ao adquirir um produto, como um automóvel, o consumidor tem o direito de que aquele veículo tenha sido concebido, fabricado e montado com perfeição, para que se desempenhe conforme suas finalidades e com segurança. Se adquiriu um pacote turístico de uma agência, está contratando uma série de serviços: a estadia, o transporte, os passeios, alimentação, etc. E todos, nessa cadeia comercial, são solidariamente responsáveis, perante o consumidor que tem a opção de acionar qualquer deles ou todos, ao mesmo tempo (arts. 7°, § único, 25, § 1°).

Benefícios de ordem processual, igualmente, foram colocados à disposição do consumidor, para viabilizar seu acesso à Justiça e a satisfação de seus direitos, como a inversão do ônus da prova quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente (art. 6°, VIII) e a escolha do foro onde se processará a ação de indenização, podendo ser tanto no domicílio do réu, como no do consumidor (art. 101, I).

Essas conquistas viabilizaram ao consumidor, a defesa de seus direitos ao mesmo tempo em que provocaram no empresariado mudanças positivas de comportamento, seja no aperfeiçoamento de seus serviços, seja no tratamento dispensado aos clientes.

Desde o advento do CDC, diminuiu, em muito, o desequilíbrio de forças na relação consumerista e, uma relação saudável, justa e transparente, a todos aproveita. Ao completar 16 anos, em 11/03/07, o CDC pode ser considerado uma lei que funciona e que trouxe inovações formadoras de consciência de cidadania.

por Ieda Maria Andrade Lima
Voluntária da ONG Associação Férias Vivas.