O consumidor brasileiro e o nível de exigência de qualidade

A gênese do conceito de cidadania é, sem dúvida, a relação do indivíduo com o Estado. Mas não é só. Numa sociedade como a nossa, baseada no capital e que tem no consumo, seu principal fator de propulsão, cabe a dois atores principais, desenhar outro aspecto da cidadania: a relação entre consumidores e fornecedores.

Ambos têm direitos e obrigações, fatores indissolúveis como duas faces de uma moeda. E é necessário, ainda, que esses direitos e obrigações sejam equivalentes. Significa dizer que o proveito que se obtém numa determinada relação jurídica deve ser compatível com o que foi dado em troca; que o produto fornecido ou o serviço prestado deve corresponder ao preço que se ajustou.

Se não houver equilíbrio entre direitos e obrigações, não se estabelece uma relação justa entre as partes e nasce para o prejudicado o direito de reivindicar a aplicação da Justiça.

Dois momentos se apresentam na geração desse equilíbrio: 1. no estabelecimento das condições do negócio entre fornecedor e consumidor (contratação formal ou informal, verbal ou escrita, tácita ou explícita) e, 2. na prestação da obrigação de ambos – fornecimento e pagamento do preço.

O Código do Consumidor se ocupa do primeiro momento, quando declara nulas cláusulas abusivas (art. 51) e municia o consumidor com mecanismos de defesa para as hipóteses de vício do produto ou serviço e acidentes de consumo (arts. l2 a 19).

A pergunta que se faz é: O consumidor brasileiro conhece e exige respeito a seus direitos? Exerce a cidadania, luta pelo equilíbrio da relação de forças, colaborando para a construção de uma sociedade mais justa?

A resposta fica a meio caminho. Conhece seus direitos, mas não completamente. Reclama, mas nem sempre e nem de tudo. Reivindica, mas não chega às últimas conseqüências. E, definitivamente, é excessivamente tolerante no que se refere à qualidade, especialmente de serviços.

Exemplos simples: Paga por um quarto de hotel contratado como “de frente para o mar”, mas acaba se conformando com uma medíocre vista lateral, enviesada. No entanto, o CDC lhe dá direito à troca do aposento, à restituição do valor pago ou ao abatimento proporcional no preço. Em caso de acidente de consumo, como uma queda na escadaria do hotel desprovida do necessário corrimão, dificilmente ingressa com ação judicial, principalmente se a lesão consistir em uma torção do pé ou mesmo uma fratura, embora a lei outorgue, expressamente esse direito. Mesmo em casos graves e extremos, como ocorrência de óbito, podemos concluir que é reduzido o número de demandas judiciais por indenização.

As causas desse comportamento são históricas. Os consumidores foram “atropelados” pelo vertiginoso surgimento das grandes indústrias e estabelecimentos comerciais. Com a revolução industrial, de repente, ao invés do conhecido artesão, seu vizinho, confiável, de família tradicional no ramo, os consumidores encontram na esquina, a “pessoa jurídica”, sem rosto, impessoal, anônima.

Enquanto o empresariado se estruturou e se articulou rapidamente, os cidadãos sequer tiveram consciência de que estavam sendo jogados numa vala com o rótulo: consumidores. Esse atordoamento permitiu que se estabelecesse um desequilíbrio de forças, impulsionado pelo objetivo do lucro rápido e do quanto maior, melhor.

Foi necessário cerca de meio século para que os primeiros vestígios de reação fossem sentidos. E, sem dúvida, a iniciativa partiu de pensadores sociais e juristas, sensíveis e conscientes de que um novo tipo de direito estava formado, mas ainda sem reconhecimento: os direitos difusos e coletivos. E esses direitos careciam de proteção.

Portanto, o direito do consumidor não nasceu de uma estruturação concomitante com a do mercado. O consumidor assistiu ao agigantamento da indústria e do comércio e, quando se deu conta, percebeu que tinha os mesmos rústicos instrumentos de defesa da época dos artesãos, agora totalmente ineficientes no mundo do consumo de massa. Nasceu precisando de proteção, em desvantagem, como um time que entra em campo já perdendo de cinco a zero.

Isso gerou o que se pode classificar de “falta de auto-estima”, conformismo e até mesmo um temor referencial aos poderosos. Gerou passividade, desmotivação para lutar por seus interesses e consolidou a desigualdade de forças. Tornou-se uma grande maioria inferiorizada.

Alguns despontaram mais cedo para a consciência de seus direitos, especialmente os de maior poder aquisitivo e de informação. Portanto, não são incomuns as reclamações sobre a qualidade de automóveis ou dos serviços de companhias aéreas (fenômeno que se torna menos intenso à medida que se populariza esse meio de transporte). Encontra-se maior número de demandas judiciais por “overbooking” ou por extravio de bagagem do que por lesões em acidentes de consumo.

Enfim, o grande contingente de consumidores brasileiros ainda não representa uma massa crítica e reivindicante. Nos países em que a conscientização é maior, o respeito aos direitos dos consumidores também é maior. Há preocupação dos empresários quanto à qualidade e segurança dos produtos e dos serviços. O clamor dos prejudicados também influencia quem tem o poder de punir. Os valores de indenização fixados pelo Judiciário norte-americano, por exemplo, são expressivamente superiores aos dos tribunais brasileiros. E, nessa medida é que se consegue o respeito do empresariado, já que atinge a própria sustentabilidade do negócio. Indenizações irrisórias não punem e geram altas porcentagens de risco e uma solene indiferença dos empresários, além de não recompensar o prejuízo do consumidor.

Especial atenção deve ser dada ao fator segurança. O consumidor se preocupa com a funcionalidade dos produtos e serviços, mas se descuida dos riscos que podem resultar do seu uso, os chamados acidentes de consumo. Órgãos e instituições como o INMETRO, ABRINQ e PRO TESTE trabalham em favor da segurança de bens e serviços. A ONG ASSOCIAÇÃO FÉRIAS VIVAS se dedica à segurança e prevenção de acidentes em atividades de lazer e turismo, fornece em seu site “dicas” de segurança, jurisprudência de decisões sobre indenizações e atendimento às dúvidas do consumidor https://feriasvivas.org.br

Existe uma inquietação latente na comunidade consumidora e que se mede por um lento, ainda incipiente, mas crescente nível de exigência. Cabe aos próprios consumidores impulsionar essa tendência, atingir a maioridade, deixando de ser hipossuficiente.

O CDC e os órgãos de defesa do consumidor são instrumentos dessa tarefa. O sistema judiciário brasileiro, infelizmente, é fator de desestímulo, em face do alto custo de uma demanda e da demora na solução dos casos. Entretanto, no mérito, as decisões têm reconhecido os direitos dos consumidores. Ainda a favor, há os Juizados Especiais que podem abrigar grande parte dessas reclamações e abreviar o tempo de suas soluções.

Fazer valer seus direitos é exercício da cidadania!

por Ieda Maria Andrade Lima
Voluntária da ONG Associação Férias Vivas.